Na semana em que foi
empossado o primeiro presidente negro da história do STF, Joaquim Barbosa, é
difícil não tocar no assunto.
Lógico que fiquei
contente. Assim como também fiquei quando o Obama foi pra Casa Branca. Mas não
contente daquele tipo “oba, agora ‘eles’ vão ter que nos engolir e nos dar
valor”. Nada disso.
A entrada desses dois
negros no poder só confirma uma impressão que tenho há algum tempo: o mercado
não sabe o que fazer com os negros e os empurra ao serviço público.
Há alguns anos, quando vim
pra São Paulo trabalhar no Governo, entrei pela primeira vez em uma repartição,
próxima à Praça da Sé. Minha primeira impressão: muitas mulheres, várias delas
negras.
Hoje já me acostumei.
Trabalho em um prédio bacana, espelhado, nos Jardins, a duas quadras da Av.
Paulista e minha diretora é mulher. E negra. Estou satisfeito com isso.
Mas eu tentei trabalhar no
mercado. Juro que tentei. Bancos, financeiras, corretoras, consultorias,
multinacionais. Todos receberam meu curriculum de economista. E olha que lá
consta a minha graduação numa universidade reconhecida, das melhores do país,
que está sempre na parte de cima dos rankings feitos por aí. Isso é o que eles
dizem.
Não virou nada, lógico. Eu
não tinha perfil, lógico. Isso é o que eles dizem.
O caso mais interessante
em que fui recusado aconteceu numa seleção do Itaú. Fui concorrer a uma vaga
daquilo que eles chamam de trainee. O pacote era completo: terno obrigatório,
dinâmica de grupo, palestra motivacional, apresentações cronometradas, briefing
feito com cartolina sentado no chão e todas aquelas formas de
constrangimento conhecidas.
A recrutadora era uma
loirinha bonita e simpática. Devia ter no máximo uns 3 anos a mais que eu. Ela
pareceu o tempo todo muito curiosa a meu respeito.
Primeiro ela estranhou o
meu sotaque. Você é paulista mesmo?
Depois ela perguntou se eu
havia estudado em colégio público. Respondi que não e ela fez a mesma cara que
uma mãe faz quando sabe que o filho está escondendo alguma travessura.
Ao fim da dinâmica, ela
pediu pra cada um contar seu “diferencial” para a empresa. Eu disse que gosto
de ler, tenho facilidade com línguas e que convivo bem com gente de qualquer
origem social, já que na minha família tem de tudo um pouco.
Foi a deixa que a
recrutadora estava esperando. Primeiro ela perguntou como era a casa em que eu
cresci. Disse que era normal. Pai, mãe, irmã, três quartos, quintal com grama,
sacada com rede (quando mudamos para um apartamento), TV em cada quarto,
aparelho de som na sala, vídeo-game, empregada, livros e gibis na estante, etc.
Ela disse que eu podia me soltar e não precisava esconder nada.
A essa altura eu já havia
sacado onde ela queria chegar. Tentei me defender e disse que meus pais davam
aula numa universidade federal, enfatizando o “federal”. Ela fingiu que
acreditou e passou a fazer perguntas pra outro candidato.
Minutos depois ela separa
a turma em dois grupos. Um grupo permanece na sala, outro é dirigido a um
corredor ao lado. Eu era do grupo que foi pro corredor.
Estava fora, claro. Mas a
recrutadora ainda fazia uma entrevista reservada com cada um dos excluídos, pra
ver se o sujeito tinha algo interessante a dizer e ainda conseguir uma segunda
chance. Uma espécie de repescagem.
Na minha vez, ela
perguntou o que eu havia achado do processo. Falei que não esperava tantas
perguntas pessoais, mas que tentei responder a tudo de forma sincera, afinal
não tinha nada a esconder.
Foi a segunda deixa que eu
dei pra recrutadora naquela tarde.
Ela: Você devia ter
aproveitado melhor os seus diferenciais. Eu te fiz perguntas pessoais exatamente pra você poder
se destacar dos outros candidatos.
Eu: Não entendi. Como assim, me
destacar?
Ela: Você devia falar
sobre as suas origens, a sua vivência, você é diferente, devia ter falado mais
sobre isso, usar a seu favor.
Eu: Diferente em quê?
Todos aqui estudaram no mesmo tipo de escola, fizeram o mesmo tipo de
faculdade, temos padrão de vida mais ou menos igual, com famílias parecidas,
com gostos parecidos. No que eu sou diferente?
Ela: Não sei. Você tinha
que ter usado isso, Álvaro. Suas origens...
Já não havia mais nada a
ser dito. Recolhi meu paletó e fui embora.
Eu nunca fui a favor das
cotas raciais em nossas universidades. Mas claro que depois desse episódio eu
passei a ser totalmente contra, já que simplesmente não fazem sentido. Ser preto
com um diplomão na parede não te garante nada.
Alguns anos se passaram
daquela entrevista de emprego. Mais recentemente começaram a transmitir no
Brasil o seriado “Todo Mundo Odeia o Cris”, em que o protagonista, um garotinho
negro de boa família, estuda num colégio de brancos em Nova York.
Dou muitas e boas risadas
com os comentários de uma das professoras do garoto, a Senhorita Morello.
Inocente, ela sempre diz coisas como “Cris, os seus colegas irão fazer
lembrancinhas pra entregar no Dia dos Pais, mas eu sei que seu pai está preso e
assim você não precisa participar se não quiser, tudo bem?”. Ou “Cris, se
quiser pode chegar atrasado de vez em quando, eu sei que a sua mãe é viciada em
crack e isso deve tomar muito tempo seu e dos seus 17 irmãos”.
Embora seja uma
caricatura, sempre que vejo a Senhorita Morello na TV eu me lembro da loirinha
que me barrou naquela seleção de emprego do Itaú. Elas são a imagem perfeita de
um sistema que simplesmente não sabe lidar comigo.
Perfeito.
ResponderExcluirEu já fui contra cotas, hoje sou a favor. Não no sentido do patrão/empregado somente, mas no sentido de que há sim uma classe que tem difícil acesso a empregos, ao abrir e gerir empresas, em se formalizar ao prestar serviços e eu acho que quanto mais melhor. Há preconceito sim e é sabido. O melhor resultado por mim esperado nisso tudo é que haverá pessoas em quantidade com dinheiro e estudo, mas não há de querer ser nada disso aí que a classe media/ricos de hoje, a grosso modo, negros, brancos, e todas as etnias com preconceitos e criados de uma maneira onde não há respeito equalitario e sim, teremos novos ricos, seja para a classe média ou qualquer outra delas. Há sim um diferencial, mas a avaliadora estava equivocada, aliás, hoje, quem não está?
ResponderExcluirrougeauvert, em primeiro lugar, obrigado pelo comentário e seja bem-vindo.
ResponderExcluirJá pensei sob esse ponto de vista, dos micro e pequenos empresários, em relação às cotas. Mas acho que nesse caso só faz sentido pensarmos em cotas sociais (reservar parte das vagas em universidades para egressos de escolas públicas), não cotas raciais. Isso por 2 motivos: a informalidade dos pequenos empreendimentos é um problema institucional de todo o país, atinge a todos, independente da cor da pele; em segundo lugar, o maior impeditivo de um negro abrir uma empresa e prosperar não é a sua qualificação, mas a falta de capital, de dinheiro pra investir e sustentar o negócio (algo que um diploma, por si só, não traz, como procurei demonstrar no texto).
A propósito, fiquei curioso a respeito do seu blog. Aguardo seus próximos posts.
Abraço.